Conheça a história de pessoas que sofreram com o problema na infância e saiba como elas resistiram à violência
Os maus-tratos a crianças e jovens em ambientes domésticos ganham destaque na mídia quando repercutem de forma tanto chocante quanto trágica. Infelizmente, são os casos com um desfecho triste que chegam ao conhecimento da sociedade e despertam a atenção para esse tipo de violência, tão comum e tão prejudicial.
O caso de Bernardo Boldrini, encontrado enterrado na cidade de Frederico Westphalen (RS), é mais um exemplo do quanto essa violência pode ser cruel e fatal. O incidente voltou à mídia nas últimas semanas, após a divulgação de imagens do celular de Leandro Boldrini, pai do garoto, que foram recuperadas por peritos que investigam o crime. Leandro, Graciele Ugulini, que é madrasta de Bernardo, e outras duas pessoas são acusadas de matar o menino, que tinha 11 anos. As imagens revelam que ele vivia em um lar desestruturado e sofria maus-tratos diários.
Mas quantos são os casos em que as vítimas sobrevivem à violência sofrida e crescem com marcas profundas? As consequências são muitas e podem transformar a criança em um adulto frio, capaz de reproduzir tudo o que viveu de uma forma igualmente perversa.
Um estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP), revelou que a criança que sofre maus-tratos tem mais chances de usar a violência no cotidiano. A pesquisa foi realizada em 11 capitais brasileiras e avaliou como a exposição a essa violência afeta atitudes e valores dos cidadãos. Dentre outras questões, o levantamento mostrou que existem chances de o adulto reproduzir a hostilidade sofrida no passado contra os próprios filhos, como método de educação. Cria-se um ciclo da força física, como indica o estudo, pois ela passa a ser reproduzida de geração em geração.
Jane Garcia, coordenadora da Escola de Educação Bíblica Infanto-Juvenil (EBI) em São Paulo, afirma que os traumas não são esquecidos facilmente. “Tudo o que vivenciamos na infância fica registrado. A violência deixa marcas por vezes irreversíveis, sejam verbais ou físicas. Há uma quebra de valores e sentimentos que causam danos. A agressão é maléfica ao ser humano e, principalmente, às crianças. O sentimento despertado é o de ódio e vingança, algo altamente destrutivo para o indivíduo na fase adulta”, diz.
A coordenadora explica que viver em um ambiente hostil pode gerar medo, angústia, depressão, dificuldades na aprendizagem e insegurança, além de transformar o indivíduo em formação em um futuro agressor, como apontou o estudo da USP. “Como estamos falando de crianças, bem sabemos que elas seguem muito mais exemplos do que palavras”, alerta.
Superação
A empresária Viviane Santiago Alves, de 35 anos, sabe bem o quanto o desamparo pode deixar marcas profundas ao longo da vida. Aos 13 anos, ela enfrentou problemas com a mãe, com quem mantinha uma relação conturbada. Agressões físicas e verbais eram constantes. A dor física era grande, mas a dor na alma maior ainda. “O desespero era tanto que comecei a beber muito e me tornei alcoólatra. Todos dias, às 7 horas da manhã, eu tomava vodca para ir à escola”, recorda.
O sofrimento intenso a fazia viver em um mundo à parte, afastada dos familiares e da própria mãe, mesmo morando na mesma casa. Aos 24 anos, tentou o suicídio. “Eu não aguentava mais, parecia que não ia ter mais jeito, que nada ia dar certo para mim”, conta.
Aos 25 anos, o então namorado a convidou para conhecer o trabalho da Universal. Naquele momento, ela percebeu o quanto a raiva que sentia da mãe era prejudicial. Descobriu que agir pela emoção não era a melhor solução e aprendeu como um sentimento ruim é capaz de gerar uma carga negativa em todas as esferas da vida. “Eu era muito nervosa e agressiva. Se não fosse o meu encontro com o Senhor Jesus, eu seria uma mãe como ela”, revela.
O namorado se tornou marido e companheiro e eles têm um filho, Lucas, de 6 anos. Ciente dos problemas que a violência pode causar, ela faz tudo diferente. “Tento ser o oposto do que a minha mãe foi. Ofereço ao meu filho o que eu não tive. Sou amiga dele, dou muito carinho, mostro que ele pode contar comigo. É preciso ser rígida, mas também amiga e estar presente”, completa.
Viviane acompanhou o caso do menino Bernardo nos noticiários. “Quando vi os vídeos na televisão, chorei. Me identifiquei com aquilo, pois, assim como ele pediu socorro e ninguém ouviu, eu também pedi e não era ouvida. Infelizmente, o final dele não foi feliz.”
Os vídeos mostram momentos de agressão e ameaças sofridas por Bernardo. Em uma das imagens, ouve-se a voz do garoto pedindo ajuda. “Socorro, socorro. Vocês me agrediram, tu me agrediu”, diz ele, ao se referir à madrasta, Graciele. Ela responde: “Eu vou agredir mais. A próxima vez que tu abrir a boca para falar de mim, eu vou agredir mais. Eu prefiro apodrecer na cadeia que ficar vivendo nesta casa contigo incomodando. Tu não sabes do que eu sou capaz.” O pai de Bernardo também aparece nas gravações. As imagens são impactantes e mostram a péssima relação que ele mantinha com o pai e a madrasta.
Relacionamentos
A secretária Andréia Silva, de 28 anos, também sofreu na infância. As agressões refletiram em seus relacionamentos pessoais e amorosos. “Cresci numa família desestruturada. Morava com os meus irmãos e meus pais e, com aproximadamente 9 anos, comecei a ser violentada por um dos meus irmãos. Para completar, os meus pais brigavam muito, a ponto de tirarem sangue um do outro. Carreguei esses segredos dentro de mim com tanta tristeza que vi a minha infância se perder.”
As agressões verbais e a falta de acolhimento no próprio lar também são formas de violência. O desamparo era tanto que Andréia sentia vontade de fugir. “A minha vontade sempre era de ficar na rua, porque não me sentia acolhida dentro da minha própria casa.”
A mãe dela trabalhava fora e, ainda na infância, Andréia era a responsável por toda a casa. “Cresci com medo. Meus pais sempre foram agressivos comigo. Não podia contar o que eu sentia para ninguém e isso complicava a minha relação com as pessoas e com os rapazes que se aproximavam de mim.” As marcas que ficaram não foram apenas físicas. “A única coisa que eu queria era ajuda. Havia um grito na minha alma. Com o passar do tempo, fui vencendo essas marcas.”
Andréia não tem filhos, mas tem dois sobrinhos com quem convive em harmonia. “Meu relacionamento com eles é maravilhoso. Tenho o maior cuidado com eles para que tenham o que eu não tive: cuidado, diálogo e confiança para conversar.”
Identificar que existe possibilidade de reproduzir a agressão sofrida é o primeiro passo para evitar que a história se repita. Perceber que comportamentos agressivos e emocionais são prejudiciais é tão importante quanto reconhecer que é possível estabelecer uma relação de confiança. O cenário doméstico deve ser acolhedor. Ao perceber que uma criança está sofrendo maus-tratos em casa, um vizinho, amigo ou pessoa que não seja da família não deve permanecer indiferente.
“Com o Disque 100, é possível exercer a cidadania e o amor ao próximo, ligando de forma anônima e fornecendo informações para que o caso seja verificado por profissionais do Conselho Tutelar. É um serviço gratuito que todos nós podemos usar com responsabilidade”, orienta Jane Garcia, que trabalha como educadora há mais de 20 anos. Ela lembra que educar é uma responsabilidade enorme e exige dedicação. Quem recebe carinho e amor, certamente, vai oferecer ao próximo toda essa atenção recebida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário